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sexta-feira, 13 de maio de 2011

Escola: Muito Prazer - Texto 2

Projeto de Orientação Sexual na Escola
Encontro Temático EMEI/CEI - Sexualidade Infantil, Gênero e Diversidade 
9 de setembro de 2004 / Círculo Militar – SP 
José  Outeiral (Médico Psiquiatra e Psicanalista)
Quero agradecer o convite que me foi feito pelo GTPOS para conversar com vocês sobre questões da prática da sala de aula com as crianças e com os adolescentes.
        A escola como espaço de promoção da saúde e prevenção da doença
A primeira pergunta que talvez se devam fazer é por que convidar um médico para falar a educadores? Eu diria a vocês que isso se deve ao fato de que há um reconhecimento de que a escola hoje tem um currículo que necessariamente deve envolver promoção da saúde e prevenção da doença. É possível que muitas crianças e adolescentes encontraram na escola, a segunda, porque a primeira sempre será a família, a segunda chance e talvez a última de encontrar um ambiente favorável ao seu desenvolvimento. Quem não aprender alguma coisa de português ou de matemática esse ano, poderá fazê-lo no próximo ano. Entretanto estar envolvido com a violência, com questões da sexualidade ou mesmo se tratando de crianças com as questões das drogas, esse é um problema para hoje, imediato. E nesse sentido, eu não tenho a menor dúvida de que a tarefa do professor é extremamente importante na vida dessas crianças e desses adolescentes.

               O espaço que nossas crianças e adolescentes habitam
Como médico, eu quero trazer algumas estatísticas para vocês, que pode ser facilmente acessada nos indicadores sociais do IBGE, que nos revelam que   no último censo, realizado há 2 anos, encontramos como causas de morte entre os nossos jovens; a primeira causa é homicídio, a segunda causa acidentes, a terceira causa suicídio e só depois começam as assim chamadas doenças físicas e orgânicas, ou seja, as três primeiras causas de morte dos jovens no nosso país se devem ao que nós chamamos “causas externas ligadas a violência”. Estes achados  nos colocam frente a questões que todos aqueles que trabalham com crianças e adolescentes devem ser levados a uma reflexão bastante profunda. Eu não tenho a menor dúvida de que vocês terão um papel, volto a repetir, na prevenção da doença e na promoção da saúde, fundamental. No penúltimo censo, feito há 12 anos, homicídio, que hoje é a primeira causa era a quinta causa de morte. Isso significa que o homicídio em 12 anos se deslocou da quinta posição para a primeira. O que acontece? Nós tivemos na sociedade transformações muito profundas, muito intensas. Podemos  pensar na nossa população. Na década de 70 (do século passado), havia, por exemplo, uma música, comemorando o campeonato mundial de futebol em que o Brasil havia vencido, que tinha como refrão, mais ou menos o seguinte: “Noventa milhões em ação...” Anos 70, hoje nós cerca de 180 bilhões de habitantes. Eu sou mais velho que a cidade de  Brasília, que tem 45 anos. Se pensarmos que determinadas cidades como Campo Grande, Londrina, com quase 1 bilhão de habitantes, não têm ainda 70 anos,  somos levados a constatar o fato de que num curto espaço de tempo, houve uma grande migração para as grandes metrópoles que não vivem o verdadeiro desenvolvimento. Um médico caracterizaria o crescimento destas metrópoles como um tumor, ou seja, um crescimento desordenado, desorganizado, anômalo. Enquanto nas pequenas cidades ou no interior existe solidariedade, uma rede social de amparo, paradoxalmente, no grande centro urbano o que existe é: na multidão, isolamento e desamparo. A família “ampla”, ou “patriarcal”, com vários adultos, por vezes inseridos no mesmo modo de produção e habitando próximos uns dos outros, deu lugar à família “nuclear”, a família dos grandes centros urbanos, pequeno grupo familiar onde um terço dos pais, não está mais em casa e onde a mãe tem de educar e prover o sustento de seus filhos sozinha.
                  As transformações nas últimas três décadas: nas famílias e nas crianças e adolescentes
Eu sou médico desde 1971, então eu vou comentar com vocês, muito rapidamente, duas transformações que  pude observar ao longo dessas três décadas. A primeira delas, transformações nas famílias, depois nas crianças e adolescentes.
Na década de 70 quando não havia ainda, ou nos anos 60, acontecido essa grande migração para os centros urbanos, nas pequenas cidades ou no campo, havia uma estrutura familiar que era uma rede ampla de apoio, onde na eventualidade da falta, de dificuldade de um dos pais, sempre havia um tio, um avô, um amigo, um padrinho que se fazia a cargo do cuidado da criança; a família “patriarcal”. Quando há migração para os grandes centros urbanos, nós temos uma pequena família, a família “nuclear”, distante do grupo familiar de origem. Assim, que é exatamente no fim dos anos 60, início dos anos 70, que crianças e adolescentes começam a chamar os adultos em geral e os professores em particular de “tios”. Eu sei que o Paulo Freire escreveu um breve texto dizendo que “professora não é tia”: ele queria valorizar o trabalho do professor. Mas a minha forma de compreender o fato, de que eles – crianças e adolescentes - desde o fim dos anos 60 ,nos chamam de “tios” é que eles tem a necessidade de recompor uma rede familiar mais ampla que lhes dê segurança, escolhendo parentes no vizinho, no pai de um amigo ou no professor e na professora. Serzindo o tecido social esgarçado, construindo novas “relações de parentesco”, não baseadas na linha familiar. ; e, me arriscaria a dizer, que na passagem do século, vocês serão chamados não só de “tios”, mas levados também à busca de encontrar em vocês funções parentais, de pais e mães. Porque tanto na rede privada como na rede pública das escolas, os pais, muitas famílias, na sua perplexidade, nesse mundo de tantas mudanças, terceiriza, assim como uma empresa terceiriza segurança, limpeza e alimentação, terceiriza para a escola cuidados parentais. Isso exige de nós uma discussão muito profunda.
Na última década questões novas em relação à família surgiram. Se nos anos 60-70 o professor que tinha entrado na sala de aula imaginar “um tipo de família” para seus alunos, hoje, ele entrando na sala de aula terá de lidar com a diversidade, com a singularidade, com fato de que naquela sala de aula seus alunos vêm de diferentes estruturas familiares, de distintas culturas familiares. Um exemplo, disso, muito claro, é quando o filho da Cássia Eller, com a morte da cantora, não ficou sob a guarda do avô com o qual tinha laços de sangue, mas foi criada uma nova jurisprudência, que deixou a guarda da criança à companheira da Cássia Eller. Foi reconhecida na justiça,  através desta jurisprudência de uma nova configuração familiar. Há uma transformação grande. Por exemplo, o apresentador de TV Gugu, Gugu resolve ser pai, escolhe uma mulher que provavelmente cuida bem de crianças, uma pediatra. Ela mora num lugar e ela no outro e Gugu escreve um livro sobre paternidade, que é um sucesso nas bancas. A minha conterrânea Xuxa, como o Gugu, é adulta, se sustenta, resolve ter um filho e este é um direito que reconhecemos. Ela escolhe o homem que lhe pareceu, obviamente, ser bem apessoado, teve o bebê e resolveu, depois de algum tempo,  separar-se do pai e cuidar da. criança com o auxílio de Marlene Matos. Quando houver o “espetáculo” (a sociedade contemporânea busca o “espetáculo”) do primeiro aniversário da menina, o pai irá tirar as fotos para uma revista de variedades. Não me arriscaria a dizer que crianças nascidas destas novas configurações familiares serão crianças “de risco”.. Isso que nos produz surpresa, ansiedade, riso, escárnio, se deve às nossas dificuldades de lidar com as novas circunstâncias, a diversidade e a singularidade vão se colocando e nós não sabemos ainda como trabalhar com isso. Eu acredito que assim como em Porto Alegre, na minha cidade, aqui em São Paulo nas periferias, quem cuida das crianças são, muitas vezes,  as avós. Porque os pais são adolescentes, ou não estão em casa, ou estão vivendo a adolescência. Mas não só as avós na periferia cuidam das crianças, outras circunstâncias fazem com que os pais deleguem os cuidados parentais repito, por exemplo, também para a escola.
Mas não mudou só a família. Nós somos obrigados hoje a pensar em famílias, até porque cerca de 1/3 dos homens não está na casa, no ambiente familiar. Fisicamente o pai não está presente. Mas nós temos que imaginar que a própria infância e a própria adolescência se transformam. Isso traz questões extremamente importantes para a escola.


Criança sempre existiu, mas o conceito de “infância”, como período de desenvolvimento, com necessidades e direitos específicos, têm cerca de 200 anos. Foi uma grande conquista da modernidade o conceito de “infância”. Acontece que  nós, na sociedade contemporânea, estamos, segundo vários autores, “des-inventando” a infância. E é extremamente importante que a escola lute pela preservação desse conceito. Quero expor a vocês a primeira lâmina onde vou colocar parte desse processo.
Imaginem vocês que a adolescência é o período constituído entre 10 e 20 anos segundo a Organização Mundial de Saúde, ou entre 12 e 18 anos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Nós temos aqui a infância, a adolescência e o mundo adulto. Se a infância, esse conceito tão importante, tem cerca de 200 anos, é possível que a adolescência tenha começado a ter uma existência mais facilmente identificada na primeira metade do século passado, correspondendo, entre outras coisas, ao grande crescimento das cidades e ao ingresso da mulher no mercado de trabalho, no período pós-guerras (1914-1918/1939-1945), dentro inúmeros outros fatores.
A outra questão que eu queria comentar com vocês, a partir de minha experiência dessas três décadas trabalhando com crianças, adolescentes e famílias, é dizer  o seguinte: na década de 70 alguém se tornava púbere(transformações físicas, puber vem de pêlos) e depois ficava adolescente. Na década de 80 começou um fenômeno distinto: a puberdade e o fenômeno psicológico-social adolescência ocorrendo juntos. Na última década a observação é muito singular, não são púberes ainda, têm 7, 8, 9 anos e têm a conduta adolescentes, lembremos, novamente, que a adolescência é um fenômeno psico-social. Ou seja, se vocês esperam encontrar, hoje,  conduta adolescente como diz o ECA, depois dos 12 anos, estão muito enganados, vão encontrar adolescentes antes dos 10 anos, repito, não púberes ainda.
Vou tentar explicitar melhor essa idéia. A adolescência começa a invadir os anos da infância e vai invadindo particularmente os anos escolares, trazendo todo o turbilhão adolescente para estes anos, de tal forma que vai produzir particularmente dois tipos de dificuldades: dificuldades de aprendizado e dificuldades na formação dos códigos de relacionamento entre as pessoas, dificuldades na constituição de uma ética e de uma moral. Quando nós trazemos a sombra da adolescência, o turbilhão adolescente sobre a infância, nós trazemos diversas questões para uma mente ainda não habilitada a lidar com isto. E esse turbilhão vai interferir nessas duas áreas. Como isso se dá? Eu poderia listar muitas maneiras onde nós começamos a construir a “dês-invenção” da infância. Uma delas é pela erotização genital precoce. Nosso problema não é só a prostituição infantil. A nossa cultura, como um todo, promove a erotização genital de crianças. Dou um exemplo a vocês, há poucos dias eu trabalhava com uma mãe cuja filha de 5 anos, freqüentando a pré-escola, não queria ir à aula porque as coleguinhas de 5 anos iam para a escola de sutiã e ela não tinha ganhado o sutiã. Como vocês sabem, existem sutiãs hoje, para meninas de 5 anos. É difícil encontrar uma sandália para uma menina de 8, 10 anos, que não tenha salto, desaconselhável pelos ortopedistas, mas que a cultura incide fortemente sobre isso. Se vocês assistirem um desfile de “moda”, vocês verão meninas de 12 anos, vestidas de uma forma extremamente insinuante e erotizada. Eu poderia me alongar muito comentando como a nossa sociedade, sem querer focar sobre a midia, mas vocês estão lembrados quando de um programa que apresentava meninas muito pequenas, de 5, 6 a 7 anos dançando a “dança da garrafa”. Estão lembrados disso? E como a Promotoria e o Conselho Tutelar demorou a intervir, proibindo essa parte do programa. Todos nós estamos envolvidos nessa discussão, no esclarecimento dessas questões, coniventes ou não.
Um segundo ponto, diz respeito nesta questão da “dês-invenção” da infância, ao fato de que nós vivemos numa sociedade extremamente voltada ao consumo e que descobriu nas crianças um grande mercado consumidor que é capaz de influenciar inclusive o consumo dos pais. Como tornar uma criança uma grande consumidora? Atingindo um ponto fundamental da infância, que é o “brincar”. A sociedade de consumo, e nós somos parte ativa desta sociedade, incluindo a escola, começa a “dês-inventar” o brincar. O importante é comprar o brinquedo. O prazer está em comprar o brinquedo. Comprado o brinquedo há um tédio muito grande do qual só se escapa comprando um novo brinquedo. A “dês-invenção” do brincar é muito clara, se nós prestarmos atenção em determinados jogos ou certas brincadeiras infantis que vão sendo substituídas por outras. Eu, por exemplo, gosto de usar uma figura que é a seguinte. Peça a um aluno de vocês para fazer uma pipa, corta a taquara (vareta) em quatro, faz armação de cordão, papel amanteigado, e na hora de colar o papel surge um grande problema, não existe  cola! Como colar? São incapazes de ir até a cozinha e fazer um grude com alguma farinha para fazer a pipa. Eu brinco dizendo que quem não sabe fazer grude é um sério candidato a uma vida sem cidadania. Brincar é fundamental e eu vou retomar logo em seguida de forma mais explícita isso.
Eu posso dar um outro exemplo a vocês, quando eu era menino, 9 anos, ainda no curso primário como se chamava, não havia rádio portátil. Imagine a revolução tecnológica desses últimos anos. Quando o rádio portátil surgiu era algo muito caro. Mas circulava na sala de aula um esuqema, como comprar um cristal, um resistor, um alto-falante e construir um rádio, chamava-se “Galena”. Os meninos e meninas, as crianças, faziam o rádio. Eram capazes de brincar com um bola feita de meias usadas. Se não houver uma bola, do pentacampeonato, às vezes não sai jogo. O jogo do computador, por exemplo, não é o verdadeiro brincar. Brincar é sinônimo de criatividade, espontaneidade. No computador  alguém se torna, apenas, um exímio repetidor, ou seja, quanto mais eu repito habilmente, passo para outra fase, porque toda a criatividade está tolhida pelo “softh” do jogo, que já vem pronto. É função da escola preservar o brincar, e eu vou retomar isso depois.
Então, não só há uma “des-invenção” da infância, como observamos outro fenômeno que atrapalha de forma significativa esses dois momentos evolutivos fundamentais: primeiro a infância e depois a adolescência.
A adolescência não só aborta, invade parte da infância, como começa a invadir a própria vida adulta. Isso eu acho extremamente importante quando falo a professores. Existe uma palavra que consta de dicionário que se chama “adultescer”, que é uma junção de adulto com adolescente, e que significa que nas grandes cidades ocidentais o objetivo de muitos adultos é, ao menos,  parecer adolescente. Com isso não só “dês-inventamos” a infância, como disse antes, mas começamos a dês-inventar o adulto. Existem professores que ficam tão amigos de seus alunos, mas tão amigos, que passam a ser “adultescentes” e não mais adultos. A escola precisa da preservação do adulto, ainda de uma maneira mais incisiva eu diria, e como pai e mãe. Pai e mãe não é amigo, amigo é cúmplice. Pai e mãe é pai e mãe. Amigos nós temos muitos, mas pai e mãe um só. Pai e mãe pressupõem amizade, mas o pai e a mãe que é muito amigo dos seus filhos, às vezes, têm nisso uma forma de abdicar da sua função de adulto que exige confronto, conflito, colocação de limites. Isso é tão sério, que por vezes eu vejo na pré-escola essa erotização genital precoce, pais de crianças da pré-escola comentando como o seu filho é namorado da sua coleguinha, que tem às vezes 3, 4, 5 anos. E os pais dizem: O meu filho “tá namorando a fulaninha”. E os pais da “fulaninha” corroboram essa fantasia. Eu penso que isso é muito mais uma projeção nas crianças de uma vida insatisfatória sexual dos adultos que começam a erotizar os filhos muito precocemente, de que uma verdadeira concepção saudável do que é a sexualidade humana. Sexualidade humana pressupõe vários elementos ligados a maturação e ao desenvolvimento. E quando nós antecipamos, de maneira demasiadamente precoce ,alguma dessas etapas, o indivíduo se torna incapaz de lidar com a questão que lhe é trazida.
Não bastasse muitos adultos “adultescer”, alguns são, o Caderno Mais da Folha de São Paulo, eu acho que há uns 5 domingos atrás, todo o caderno sobre “Adultkids”, ou seja, adultos cujo o objetivo é ser criança. Vale a pena vocês obterem esse Caderno Mais. Ou seja, não bastasse abrir mão da posição da identidade de adultos, buscando parecer adolescentes, alguns passam a agir, como se eles próprios fossem crianças. Necessitam de limites, se portam como se fossem crianças pequenas.
Tudo isso produz na sala de aula fenômenos muito interessantes que a sociedade de consumo rapidamente trata de aproveitar para vender algum de seus produtos. Apenas um exemplo, porque temos que reservar um tempo para que vocês também possam fazer comentários e eventualmente alguma observação. Às vezes na sala de aula, lá no fundo, tem alguma criança que anda de um lado para outro, com dificuldades de permanecer numa tarefa, e, por vezes,  vem à mente do professor um diagnóstico muito freqüente, “Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade” e uma substância Ritalina. Esta medicação tem aumentado muito suas vendas, tanto que nós psiquiatras brincamos: é criança, então tem Transtorno de Déficit de Atenção; se é adulto Transtorno Bipolar; se é velho, Alzheimer. Terminou. Ou se é uma coisa ou outra. Sempre existe um “rótulo”. Essa criança lá na sala de aula, a maioria absoluta delas, eu digo a vocês, não sofre do assim considerado “Transtorno de Déficit de Atenção”, sofre, sim, de falta de atenção dos adultos em relação a elas. Falta atenção dos pais em casa para com ela e falta um acolhimento da escola. E através dessa conduta, ela busca ainda, com esperança de que alguma atenção lhe seja dada e não uma Ritalina. Eu não estou dizendo que não exista “Transtorno de Déficit de Atenção”, que é um nome novo para que o professor A. Lefevre, da USP, há mais de 30 anos, descreveu e se chamava “Disfunção Cerebral Mínima”, com os mesmos procedimentos diagnósticos e o mesmo tratamento.. Então, foi modificar a “embalagem do produto” para vender com mais eficácia. Uma “reinvenção” da roda... Nós temos que prescrever “atenção” para essas crianças. E um cuidado muito grande em evitar medicalizar ou homogeneizar comportamentos com remédios, falo isso como médico, psiquiatra e como psicanalista.
O que a escola pode fazer? Gostaria de dividir com vocês, e vocês não me levem a sério porque eu sou médico, não sou professor. É só uma forma de provocar vocês. O que uma escola pode fazer para se tornar um ponto de promoção da saúde e prevenção da doença? 

                                Sustentar o sonho, a utopia e o desejo
Eu diria que em primeiro lugar, a escola deve sustentar sonho, deve sustentar a utopia e o desejo. Eu quero dizer a vocês com isso, que a escola, de certa forma, seguindo a idéia da sociedade industrial, expulsou o prazer, a alegria de aprender da sala de aula. Por vezes, se confunde “seriedade no trabalho” com exclusão da alegria e do prazer. E muitas vezes os próprios professores não têm uma “paixão” suficiente para educar e uma alegria suficiente de estar em contato com os seus alunos. A escola tem que resgatar a capacidade de acreditar numa utopia. A utopia não precisa acontecer, a gente tem que desejá-la. Estou dizendo a utopia do respeito pelo outro. E se o John Lennon disse que “O sonho acabou”, ele estava nos avisando, dentre  várias coisas, que a escola é um lugar que tem que sustentar o sonho. A escola tem que ser algo mágico. Muito além da fórmula de Báskara, de Dom Casmurro, do present continuous, dos afluentes do rio Amazonas, é o local do sonho, da utopia e do desejo.
                                                   Brincar
Em segundo lugar, brincar. Brincar vem do latim,  vínculum, vínvulo. Quando no nosso idioma o v é trocado pelo b, lá pelo século XVI, vínculo deu brinco, que prende a orelha e deu brincar. Quando alguém brinca, não é só desenvolvimento psicomotor. Quando alguém brinca, cria um vínculo. Onde se brinca a droga entra com mais dificuldade. Quando se brinca, a violência tem mais dificuldade de se impor. Eu diria a vocês, inclusive, que primeira posse da cidadania, a primeira assunção da cidadania não é quando se vota aos 16 anos. Quero dizer a vocês que eu penso que as primeiras posses da cidadania se dão quando alguém brinca. A criança que brinca verdadeiramente começa, então, a se tornar um cidadão. Por exemplo, no meu Estado tem uma multinacional, cuja sede é em Porto Alegre, e o setor de Recursos Humanos dessa grande siderúrgica, sabe que muitas pessoas com MBA, Mestrado em Administração e Negócios procuram emprego. Entretanto, o que falta é gerente que saiba brincar. E eles levam seus gerentes para ensiná-los a brincar, em seminários: a corrida de saco, subir em árvores. Por quê? Porque falta criatividade e espontaneidade.
A escola pode criar esse espaço de brincar, não para que eles passem a trabalhar para para as grandes indústrias. Absolutamente. Mas para que eles construam e possuam  cidadania. E diria, se vocês me perguntassem: bem, qual a idéia que tu queres nos transmitir de tudo que dissestes? A idéia que eu queria transmitir é essa: brincar é posse da cidadania. E os professores vão ter que re-aprender a brincar. Eu me arriscaria a dizer que os professores têm dificuldade, inclusive, de movimentar o corpo na sala de aula. A capacidade de brincar dos professores também é atingida.

                                              Pensar
Terceiro lugar, pensar. A escola é o local onde se pode ensinar a pensar. Os jesuítas começaram a ensinar os curumins 50 anos depois de descoberto o Brasil, o José de Anchieta começou aqui em São Paulo a ensinar  aos curumins o latim. Lá em Porto Alegre existe um colégio, Colégio Anchieta, onde tem um grande outdoor em frente à escola escrito assim: “Esta escola enina a pensar. Colégio Anchieta. Os jesuítas trabalham na educação há tanto tempo e acreditam que as crianças chegam na escola sem pensar? Exatamente! Tem muita gente que passa pela vida sem nunca ter pensado. Sabe o endereço, sabe o CPF, sabe o nome da mãe, o nome do pai, talvez, se orienta, trabalha. Entretanto, nunca pensou ou não pensa com freqüência. Pensar significa reflexão, crítica. Ele repete, repete como no jogo de computador, quanto mais repete passa a um outro nível do jogo. Mas só como repetidor. Pensar é extremamente difícil. Pensar é perigoso. Eu vou contar uma pequena história para vocês de como pensar é perigoso e surpreende o próprio pensador. Eu imaginei que essa história era do Monteiro Lobato, mas depois uma professora de literatura me disse que Monteiro Lobato nunca escreveu essa história. Eu devo ter sonhado a história e para torná-la mais verossímil dizia que era de Monteiro Lobato; a história é minha. A história é assim...
Uma pequena cidade do interior e um padre bem velho e eles rezavam só repetindo uma ladainha, eles rezavam da seguinte forma: Ave Maria, cheia de graça.... (rapidamente). Morreu o padre velho um dia, subitamente. Mandaram um padre novo da capital. O padre novo chegou, começou a missa e eles começaram a rezar (rapidamente a Ave Maria). Parem com isso. Rezar, religare, nós vamos pegar cada frase da oração e vamos pensar sobre ela. E assim rezaram. À noite, uma beata estava sozinha, se aqueceu embaixo das cobertas e pensou: Vou rezar que nem o padre novo ensinou. Aí ela pensou Ave, e veio uma imagem na cabeça dela que a assustou muito. Quando ela disse Ave, ela pensou numa galinha. Ficou ansiosa, mas resolveu seguir adiante. Cheia de Graça. Aí ela se assustou muito porque viu a imagem de um galo e várias galinhas. A beata estava muito nervosa e aí teve um terceiro pensamento que a apavorou muito, ela pensou: “Ainda bem que esse padre velho morreu e agora nós temos um padre novo e bonito”. Moral da história, primeiro quando nós pensamos somos surpreendidos pelos nossos próprios pensamentos; segundo, nos assustamos com os nossos pensamentos; terceiro, todo o pensamento é uma transgressão; e quarto, é fundamental pensar.

                        Preservar o conceito de infância e a existência do mundo adulto
Uma outra função da escola é preservar o conceito de infância e a existência do mundo  adulto. Uma escola pressupõe não apenas um grupo de crianças ou um grupo de adolescentes; a escola pressupõe a existência de adultos, não de “adultescentes” ou de “adultkids”, mas de adultos que serão capazes de dizer não e assumir suas responsabilidades como “adultos”. Aprendendo com as crianças que inicialmente dizem não antes do sim, nós temos que protegê-las, estabelecer limites, limite não é bater na criança nem humilhá-la, limite é proteger, permitir o viver criativo. Estar vivo não é sinônimo de saúde. Saúde é o viver criativo que inclui a agressão, que inclui a transgressão, que inclui o questionamento, que inclui a espontaneidade e a criatividade.
                                      Matricular os pais na escola
Por último, a integração dos pais na escola. É fundamental que a escola mude a sua atitude em relação aos pais. Assim, a escola brasileira tem uma tradição complexa, Gilberto Freire escreve sobre isso no “Casa Grande Senzala”. Os jesuítas pegavam as crianças e as separavam das suas famílias, levando para as escolas jesuíticas. Afastavam os pais das crianças e nós mantemos, ainda hoje,  essa tradição; de, por exemplo, só chamar os pais nas escolas quando alguma coisa de ruim está acontecendo. Eu que sou pai, cada vez que um dos filhos chegava com um bilhete da escola, eu já sabia: alguma coisa ruim aconteceu. A comunicação que a escola tentava estabelecer com os pais não era de integração de uma tarefa, a educação. Mas ao contrário, era uma reclamação, uma crítica, uma observação que produz, por fim, angústia nos pais. Eu diria que hoje talvez fosse desejável que quando os pais fossem matricular o filho na escola eles deveriam preencher uma ficha de matrícula, deveriam ter, eu não sei como se chama aqui em São Paulo, mas deveria ter um Conselho de Classe onde eles, como pais, pudessem trazer as questões que observam em seus filhos em suas casas e discuti-las com o que observa o professor na sala de aula.
Essa integração com os pais, eu tive oportunidade de constatar trabalhando com a Prefeitura de Porto Alegre, com uma escola de periferia. Num trabalho com os orientadores, diretores de escola e a comunidade, um homem, que certamente não tinha mais do que cinco anos de estudo, que era um líder da comunidade, disse o seguinte: não sei por que as escolas (e as escolas do município de Porto Alegre são muito boas, tem estádios cobertos, refeitórios, etc) ficam fechadas no fim de semana e as crianças têm de brincar na rua? Por que a escola tem que funcionar das 07:30 da manhã as 06:00 da tarde e não funciona sábado e domingo? O homem tem razão, mas ele foi mais adiante e disse: E talvez no pátio da escola pudesse ter churrasqueiras para as famílias organizarem churrascos. Eles queriam entrar para dentro da escola. Eles queriam integração com a escola. Mas o homem disse muito mais ainda. A globalização tem alguns aspectos positivos, ele contou o seguinte: que na comunidade dele haviam coletado R$ 200,00 para alugar um salão de igreja para uma festa de 15 anos, e o homem perguntou: “por que não se faz que nem em filme americano onde as festas dos adolescentes acontecem principalmente dentro do estádio da própria escola? “
A nossa escola repete a exclusão. A nossa escola tem muros que afastam a comunidade . Nós precisamos pensar muito; pensar formas de poder estabelecer canais de comunicação mais efetivos com o grupo familiar.
Bem, eu gostaria de que verdadeiramente pudéssemos hoje, aqui, com a minha fala, não tomar o que eu disse como conferência, nem levem o médico muito a sério, eu tinha 17 anos, ganhei um cadáver. Então é possível que a minha visão seja uma visão um pouco mais pesada sobre determinadas circunstâncias, ou não. Mas eu quero que parte do tempo possa ser utilizado também por vocês. Não acho que seja adequado reproduzirmos uma relação de poder onde um fala o tempo todo, desde um lugar mais alto, e a maioria, sentada, escuta em silêncio. Eu quero convidá-los a transgredir, usando a palavra também.
Muito obrigado.

Perguntas e comentários:
Comentário: Meu nome é Ana Cecília e eu sou coordenadora pedagógica de EMEI, EMEI Celso Cardoso (?). Com relação a este sonho, utopia e desejo, se eu entendo bem, o senhor coloca a escola como tendo eliminado ou expulsado a alegria... que não sei se tinha, porque me parece que a escola sempre foi, a sala de aula em particular, um lugar sempre muito chato. A gente vai para a escola e como vão até hoje encontrar os amigos, fazer bagunça, enfim. O professor muito chato, severo, tinha aquela idéia da coisa chata. Porque também brincávamos na rua. A partir de então quando se reconhece, mais para frente à infância, é que se reconhece que a escola passa ter para si a incumbência de trazer para dentro da escola a infância, então vamos brincar e vamos trazer uma alegria que não me parece que sempre pertenceu a escola. Eu queria ouvir o seu comentário sobre isso.
Outeiral – Retomo o tema da dês-invenção da infância, que ocorre na sociedade contemporânea, que alguns chamam de alta modernidade e alguns franceses de pós-modernidade. Cabe a escola lutar pela preservação da infância. E eu acredito que incluir esta tarefa de “brincar” nas atividades pedagógicas ou alegria, a introdução de técnicas pedagógicas que incluam verdadeiramente o brincar, isso é  fundamental. Inclusive para que não se constitua numa das causas da evasão escolar. Eu acho, só para provocar, porque vocês que são professores, que a escola, num sentindo amplo, ela é chata, repetitiva e bolorenta. A formação dos professores, os marcos referencias são, na formação de graduação, anos 70, 80 talvez 90 para crianças de 2005, 2010. O que nos instrumenta na graduação para lidar com esse personagem que freqüenta as nossas salas de aula? A gente imagina que virá um Pedrinho do Monteiro Lobato, menino da modernidade, que respeita o outro e acredita no seu país... Não, quem vem para a sala de aula, eu costumo brincar, que é uma mistura de Pedrinho do Monteiro Lobato com Luke Skywalker, o adolescente de “Guerra nas Estrelas”. A gente pensa que está falando com o Pedrinho e é o Luke Skywalker do “Guerra nas Estrelas”; na verdade temos um Pedrinho Skywalker.... Isso traz uma dificuldade importante. Dificuldade para o que certamente eu não tenho respostas.
Aliás, eu acho que o professor deve partilhar de uma idéia: o pior que pode acontecer, uma boa pergunta é a resposta. A função do professor não é responder. A função do professor é despertar a curiosidade e orientar a busca da resposta em cada um dos alunos. É um desastre o professor respondão. Os alunos fazem a pergunta inteligente o professor mata a pergunta com uma resposta mais esperta que ele, como adulto certamente tem.
Eu gostaria que todos nós saíssemos daqui hoje com muita dúvida. Se vocês levarem alguma resposta eu estou achando que eu não me saí bem....
Pergunta: Uma questão para mim muito importante é a questão da erotização infantil. Sou professora da EMEI Elizabeth... Eu sempre busco não erotizar, mas infelizmente a gente se encontra como amiga, uma série de fatores que interfere na sala de aula. Eu sempre fico em conflito entre o meu lado amigo e o do limite. Porque o professor precisa mesmo pôr limite, cabe a nós a direção da classe, a direção dos caminhos, porque eles buscam algum caminho. Agora o que eu queria saber se tem algum livro, alguma orientação nesse assunto da erotização.
Outeiral –. Vou falar de erotização desde a ótica de “limites”, que é um tema importante para todos nós, especialmente a escola. É necessário que  possamos saber que ninguém nasce com limite. Limite é uma coisa que se obtém no contato entre a mãe e o bebê. A mãe quando toma o seu bebê nos braços, essa é a primeira impressão do limite. Se um de nós tem uma ansiedade, alguém nos pega na mão há uma tranqüilização. Por que um abraço acalma o desespero? Por que o abraço ajuda no desespero? O abraço não precisa ser tocar, pode ser escutar ou olhar. Abraçar com o olhar, com a escuta. Porque quando alguém em desespero, pensem na sala de aula, nos alunos, é abraçado, lança uma memória inconsciente de um passado onde uma mãe os abraçava e isso tranqüiliza. É possível que muitas crianças na sala de aula não tiveram essa experiência suficiente com suas mães. Podemos abraçar com o olhar e a escuta.As crianças que não tiveram este abraço inicial, quando abraçadas sentem medo, desconfiança.... Mas é fundamental esse primeiro momento. Uma vez eu fui para um congresso, era um avião velho da Pluna, uma companhia Uruguaia que estava em falência. O piloto entrou combinando a noite em Montevideo com as aeromoças. Eu disse: Eu estou com dificuldades nesse avião. Avião velho, piloto ...., vai aterrissar no aeroporto de Montevidéu que tem vento sempre. Dito e feito, na hora do avião aterrissar deu uma “tesoura de vento” e ele teve que arremeter de novo. A sensação é de que o avião vai cair. Na fileira ao lado da minha tinha, na janela, um colega meu, um homem adulto, Pedro Ferreira, psiquiatra. Na carreira do meio, Eloísa a mulher dele, e na cadeira do corredor um estagiário bem jovem e eu do outro lado. Quando o avião começou a tremer o Pedro Ferreira pegou a mão da mulher dele e o estagiário perguntou: “Doutor Pedro posso pegar a mão da Eloísa?”. Dois homens adultos acreditavam que pegando a mão de uma mulher era mais suportável a idéia de que o avião ia cair. Por quê? Porque tiveram uma mãe, no passado, que – provavelmente – nos momentos de não-integração, de desespero, os abraçava.... Só isso, entretanto, não basta. É necessário um segundo momento que é a entrada de um terceiro na relação. A entrada do pai. Vamos ver. Depois deste momento inicial, de fusão mãe-bebê, é necessário a entrada de um terceiro.
Quem faz o nascimento biológico da criança é o obstetra. Quem faz o nascimento psicológico na criança é o pai ou quem exerce a função paterna. 1/3 dos pais, eu repito, não está em casa. Função paterna a mulher pode fazer e função materna o homem pode fazer. Aliás, a primeira função do pai é cuidar da mãe e do bebê como se ele fosse uma boa mãe. A primeira função do pai é ser uma boa mãe. Depois ele separa a mãe do bebê, permitindo que o bebê exerça sua autonomia, seduzindo a mãe de volta para ele. O pai tem que ser um grande sedutor, sabendo que depois que a mulher tem um filho nunca mais vai nos amar como antes, parte do amor fica no filho. E a de suportar isso. Botando nesse vazio que se criou o amor parental. Isso não é fácil.
Vejamos. Mãe pega a criança na horizontal, o rostinho da criança voltado para o rosto dela. Pai pega a criança na vertical, com o rosto da criança virado para o mundo. E o pai tem um brinquedo que vai jogar a criança e a mãe muitas vezes diz: Não faz assim, o pescoçinho dele é mole. E se a mãe insistir muito o pai pode dizer à mãe o seguinte: Não, eu vou fazer isso, mostrar o mundo pro meu filho, senão ele vai terminar que nem a tua irmã ou o teu irmão, que os teus pais não mostraram o mundo para eles e olha o que deu esses cunhados que eu tenho! Sempre que vocês falarem mal de um cunhado vão acertar pelo menos um pouquinho.
Isso é limite. Na sala de aula, na passagem do último século, vocês serão chamados não só de tios e tias, vocês vão ser solicitados a funções maternas e paternas. As famílias, perplexasa terceirizam para a escola, tanto a escola particular como a escola pública, cuidados parentais e mais, a escola talvez seja a última chance que essas crianças tenham, volto a dizer, de encontrar um ambiente favorável ao desenvolvimento. Não usurpar o papel dos pais, absolutamente. Exemplos? Vamos supor que uma professora disse para mãe: “Pode ir para casa, deixa o teu filho entrar aqui”. Ela está fazendo função paterna. Quando a criança está dispersa no fundo da sala e a professora diz: Senta aqui comigo. Está fazendo função materna.
Pedido Cecília: Outeiral, você poderia falar um pouco dessa função do olhar da mãe e do cuidado que a mãe faz com o bebê logo no nascimento e por transferência  esse lugar acaba sendo ocupado pela professora, especialmente pelas auxiliadoras, aqui nós trabalhamos com muitas educadoras de crianças de 3 meses até 1 ano e ½, são o primeiro estágio dos CEIs.

Outeiral – Bom Cecília, eu diria o seguinte, uma das coisas mais importantes é o olhar da mãe para o bebê. Existe um filme Cecília que vale a pena discutir com os professores, se chama “Janelas da Alma”, que é um documentário do David Martins sobre o olhar. Para tomar o tema da “atenção”, o que ajuda organizar a atenção de um bebê? É o olhar da mãe no olho do bebê. A função especular do olhar da mãe.Se a mãe não olha o bebê no olho do bebê, o bebê olha para a lâmpada, olha para a janela, olha para televisão. A atenção, ela é organizada na atenção que o adulto presta à criança. Por outro lado, em segundo lugar, o olhar do adulto, dá uma “satisfação”. Os analistas dizem: “libidimiza a criança”; ou seja, dá auto-estima e amor próprio, através do olhar.

Eu não gosto muito de usar data show. Por quê? Porque geralmente quando a gente vai usar data show apagam a luz e as pessoas começam a olhar a imagem e não a mim. Quando eu dou aula eu gosto de olhar no olho de quem me assiste. E aí eu acredito que esta experiência de podermos olhar um no rosto do outro, promove uma identificação recíproca. Eu sou capaz, no olhar de várias de vocês, sentir o que eu estou dizendo e é possível que vocês no meu olhar possam perceber a prática de vocês na sala de aula. E essa identificação, eu olhando o que eu digo no olhar de vocês e vocês vendo a prática de vocês no meu olhar, isso pode ser fundamental no trabalho com as crianças em geral, principalmente com os pequenos. Isso que é vínculo. Brincar.

Pergunta: Acredito que a escola é ideal, com sonhos e desejos quando eu sou. Educadora Eliane, CEI Pinheiros.
Outeiral – Bom vou pegar a dica para dizer o seguinte para vocês, um pediatra e psicanalista inglês, Winnicott, escreveu o seguinte, ele pegou Descartes, que todos nós sabemos, escreveu, “Penso, logo existo”, Winnicott escreveu: “Olho, sou visto. Logo existo”.
O que nós estamos falando de olhar, significa o sustentar o sonho que a pergunta refere.
Vou aproveitar para falar da constituição do “indivíduo”, que significa “único, não mais divisível”, e da transgressão. Como Adão e Eva adquiriram a condição humana? Peguem o livro da Gênesis: Adão e Eva estavam no paraíso. Tinham tudo, mas não tinham a condição humana. Se Deus existe é muito inteligente. O que Deus fez para criar a condição humana? Inventou uma proibição. Ele disse: Vocês terão tudo, só não me comam desse fruto. Do conhecimento. Adão e Eva, quando ele disse isso, rapidamente transgrediram. Foram expulsos do paraíso. Adquiriram, transgredindo e recebendo limites, a condição humana. Tudo está relacionado.
Perguntas: O senhor acredita que a criança vem à escola sem pensar, ou os adultos ignoram estes pensamentos? As crianças nos CEIs não só pensam, como transmitem esses pensamentos com formas, sons e cores.
Qual a sua opinião em relação a professores de educação infantil, ser sem perceber crianças também? O ser criança dos adultos nesta situação, mantermos contato direto com os pequenos, diga fatores negativos e positivos...
O senhor disse que pai e mãe são pais e mães, e que amizade significa cumplicidade. Sempre agi como amiga dos filhos e crianças do CEI. Isso é errado?
Outeiral – Vou começar pelo fim. Não acho errado. Só que pai e mãe não são “amigos”, cúmplices, não são da mesma faixa-etária. Eles têm que transmitir uma experiência aos filhos e a transmissão dessa experiência significa muitas vezes dizer não; não abandonar a condição de adulto. E atritos existem muitos. Pai só nós, ser pai é muito mais que ser amigo. Pressupõe amizade, obviamente, mas não se reduz a amizade. É muito mais complexo.
Eu vou fazer um pequeno desenho para tentar responder as outras duas perguntas.
Comentário Cecília: Outeiral, mas o professor também é convidado a ocupar um lugar de pai e mãe, embora sua função seja pedagógica. Por isso a função de professor também é diferente da de amigo.
Outeiral – Lógico, sem dúvida. Ele não pode usurpar o papel dos pais, o que não significa que muitas vezes ele seja levado a exercer funções parentais. Ajudando, por exemplo, a criança a entrada na sala de aula, fazendo esse corte entre a ligação forte entre o bebê e sua mãe, entre a mãe e o bebê.
Comentário Cecília: Eu queria só complementar que é uma preocupação nossa que os professores não percam o seu lugar de professor. Porque também é o lugar do pedagógico, do educativo e daquele que tem coisas a transmitir desse lugar e o de colocar limites.
Outeiral – Lógico... existe o currículo básico, mas se vocês pensarem no currículo de história, ele é baseado em currículos muito “velhos”. É necessário atualizar a formação e a estrutura curricular para o novo século....Tornar a escola não só mais  atrativa, como também mais atualizada.
Vamos a questão que ficou: limites. Imaginem vocês que uma criança na parede da casa, da sala, recém pintada, pega um pincel e na parede da sala faz um desenho. A primeira representação da figura humana. E diz, chamado o pai e a mãe: Essa é minha mãe.
Quando alguém fecha o círculo, significa que é capaz de conhecer dentro e fora, interno e externo, um e o outro. É capaz de começar a compreender de maneira bastante significativa as regras de convivência. .... na parede da sala recém pintada ou na parede da classe é necessário colocar um limite; sempre que houver dificuldade sobre o que fazer, comecem a pensar sobre o que não deve ser feito e por exclusão chegamos perto daquilo que é mais razoável de ser feito.
Primeira coisa a não fazer: usar violência, a violência é errada: “A próxima vez que tu fizeres um desenho desse vou te arrebentar a pau, tu nunca mais vais repetir”.
A segunda coisa: encher de culpa a criança, a culpa seria o seguinte: “Tu sabes o quanto papai e mamãe te amam, mas sabe quantas horas nós trabalhamos para pintar essa parede e tu fazes essa sujeira? Vai para o quarto, quando tiveres te arrependido pede perdão e nós te amamos tanto que vamos te absolver desse pecado”.
Terceiro: desqualificar o outro. Vejam vocês o meu esforço para substituir a máquina pela mão. A desqualificação é o seguinte, a criança diz: “Essa é a mamãe! Muito contente (desenho do boneco em azul)”. Aí o pai ou a mãe diz: “Isso aqui é a mamãe? Não tem pupila, não os cílios, não tem sobrancelha. Isso é nariz que se faça? Não tem boca, não botou orelha, não tem os cabelos da mamãe. Não sabe que mãe tem 5 dedos? Vai ver não sabe nem que mãe tem mão. Isso é vestido que se faça? Não fez os pés da mamãe, só desenha palitinho. Põe linha de terra que professora gosta de linha de terra (sobreposição do boneco vermelho).!
Quando alguém faz isso, destrói a auto-estima, destrói a criatividade e destrói a espontaneidade: que são três funções do desejo de “conhecer”. São três funções ligadas estreitamente à “curiosidade”. Quando nós destruímos a capacidade para o “desejo-de-conhecer” (pulsão epistemofílica) , como o exemplo que eu dei através da violência, da culpa, da desqualificação, destruímos a auto-estima, criatividade, espontaneidade, a curiosidade, repito, é atingida. Isso que algum doutor vai chamar de função epistemofílica. A função que nos leva o desejo de conhecer. É fácil destruir o desejo de conhecer do outro.
Agora só podemos ficar atentos na sala de aula a isto se estivermos olhando as crianças, subjetivando, as conhecendo pelo nome, conhecendo a história dessas crianças, historicizando as crianças, evitando isso que na modernidade nós identificamos como des-subjetivação, des-historizização.
Por exemplo, em Porto Alegre, numa escola de município, há um trabalho da subjetivação e historicização das crianças; provavelmente, aqui em São Paulo, se faz o mesmo também, que eles tragam retratos, objetos dos seus antepassados. Estudamos os locais de migração, da pequena cidade do campo para Porto Alegre, estudamos um pouco das crianças. De onde vem o nome? Nenhum de nós leva um nome sem que nisso esteja uma fantasia dos pais. Imaginem alguém que chama César Augusto é hipotônico e bem pequenininho? Outros levam metade do nome da mãe, metade do nome do pai. Outros como falta de criatividade dos pais levam o nome do santo do dia.
O meu nome, por exemplo, meu sobrenome Outeiral, surgiu assim: os portugueses vinham lutar na fronteira da Espanha lá no Rio Grande do Sul, portugueses e espanhóis, eles eram trazidos como militares no século XVIII. Então meu antepassado desceu na primeira cidade do Rio Grande do Sul, num forte que havia lá na fronteira e perguntaram para ele: “Como é o teu nome?” E ele disse: “Manoel”. “De onde vens? “ Morro em Portugal pode ser chamado de outeiro, outeiro da Glória. Ele disse: “Venho do outeiro”. Morava em cima do morro. “Então vai se chamar Manoel Outeiral”, disse o recrutador.. Passou a se chamar assim. Um outro que era pescador lá na costa da Alemanha, passou a se chamar, quando foi para a cidade, Fisherman, o homem que pesca. Cada um de nós tem uma identidade no nome, é importante trabalhar isso com as crianças. Os afluentes do Amazonas, não se preocupem, felizmente eles vão esquecer brevemente todos os afluentes decorado. O present continuous que eu brinco que é um desastre, nós estamos falando cada vez mais o gerúndio. Eu digo: Nós estamos falando. Eu não disse: Eu falo. Ou quando for ler Dom Casmurro, que foram os três exemplos que eu dei antes, imaginem se  é possível ler Dom Casmurro num mês. Dom Casmurro só tem sentido se se discute na sala de aula o que é uma mulher com “olhar de ressaca”, “olho de ressaca”. O que é isso numa mulher? Isso é o que interessa. Interessa saber: Bentinho foi traído ou não por Capitu? Essa que é a discussão. Essa escola é uma boa escola, lemos 5 livros por ano! Discordo.
Vejam bem, perguntem não esperando resposta, mais simplesmente provocando mais dúvida nos presentes e em mim.
Comentário: Meu nome é Solange, eu sou da coordenadoria de educação. Você falou sobre a integração dos pais na escola, e eu tenho percebido nas formações que existe uma relação muito conflituosa entre as educadoras das creches e as mães. Na creche essa relação conflituosa é muita velada, eu acho que até em função das crianças passarem o dia inteiro, quer dizer você tem que deixar a criança no cuidado de uma outra mulher. Eu queria que você falasse um pouco dessa relação.
Outeiral – Quando a professora da pré-escola ou da creche diz à mãe: “Deixa teu filho comigo”. Ela  separa a mãe da criança pequena. E a mãe se ressente com isso. A mãe é capaz de chegar em casa e dizer: “Eu não sei nada dessa professora, mas alguma coisa me diz que ela não é confiável”. Ou seja, é uma mãe que foi separada do filho. E os mamíferos, principalmente os humanos, têm uma relação muito estreita com seus filhotes. Eu diria que a professora da creche, a cuidadora da creche tem que ter uma habilidade muito grande para deixar bem claro a essa mãe que não é uma competição, que ambas estão juntas. Isso vai tranqüilizar o bebê, vai tranqüilizar a mãe e a professora. Quando o bebê de 18 meses começa a andar, ele está andando e se volta para a mãe. Ele quer ver se a mãe está ali, se aparecer um gato ou uma pomba a mãe vai protegê-lo, mas ele quer ver outra coisa. Ele quer ver, como a Cecília falou, o olhar da mãe. Se ele se volta para a mãe e a mãe olha com um olhar de encorajamento, de alegria e de satisfação vendo o desenvolvimento do filho, a criança continua andando. Se o bebê ou a criança pequena olha para mãe e a mãe tem um olhar de angústia, de medo, a criança volta correndo para ela. A professora tem que ter uma habilidade muito grande de fazer essa separação, entendendo o quanto nós sofremos com independentização dos nossos filhos, não só os bebês, mas inclusive os adolescentes.
Pessoal, espero ter trazido muitas dúvidas para vocês e nenhuma certeza. Não tomem nada do que eu disse como certo. Sigam, como eu faço, um aforismo do Nietzsche, para terminar: O que enlouquece não é a dúvida, é a certeza. Isso é verdade, se eu for ao hospício e o meu paciente disser: “Outeiral, te comporta como é devido a Napoleão Bonaparte que sou eu”. O paciente diz. “Te comporte frente a mim como um imperador”. Eu escrevo no prontuário “ O enfermo, não evolui bem”. No outro dia eu chego ao hospital, a enfermagem me avisa: “O paciente está muito mal doutor!”. Eu chego lá o paciente está apavorado. E diz: “Doutor, eu li que Napoleão Bonaparte tinha 1 metro e 52 e eu tenho 1 metro e 90. Será que eu não sou Napoleão Bonaparte? Eu escrevo no prontuário: “Paciente evolui bem, melhorou o prognóstico. Tem dúvidas em relação ao delírio”.
Eu acho que nós temos que abandonar a idéia de que somos Napoleão Bonaparte e suportar a incerteza, a dúvida de não saber, e na nossa prática cotidiana ter confiança suficiente em nós mesmos para exercer a nossa tarefa. E como os versos do Antonio Machado, o poeta espanhol: Caminhante não há caminho, caminho se faz no caminhar. Obrigado.

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